Resenho - Os Corumbas

quinta-feira, 31 de maio de 2012

OS CORUMBAS



Carolline Acioli O. Andrade
Graduanda em História (UFS)
Disciplina: História de Sergipe II
Prof.: Antonio Lindvaldo Sousa



Armando Fontes é um romancista paulista formado em direito, de ativa participação política – exerceu o cargo de deputado federal a partir de 1934. Fontes idealizou Os Corumbas ainda em 1919, quando, por motivo de doença, veio a Aracaju e isolou-se por mais de um ano na fazenda na qual vivera parte de sua infância. Mas o texto só foi publicado em 1933, sendo recebido com aplausos pela crítica, recebendo o Prêmio Felipe d’Oliveira. Fontes ainda escreveu Ruas de Siriri (1937) e deixou o inacabado O Deputado Santos Lima.

            Em Os Corumbas, Fontes retrata as primeiras décadas do século XX em Aracaju, com foco maior nos anos 1920. Os protagonistas do enredo são os membros da família Corumba: Seu Geraldo, Sá Josefa e seus filhos Pedro, Rosenda, Albertina, Bela e Joana (Caçulinha). O romance é dividido em três partes. A primeira está dividida em quatro subpartes e narra o encontro de Geraldo e Josefa, ainda nas suas mocidades, na comemoração da festa de São José na fazenda Urubutinga.  Também demonstram as causas que levaram a família dos Corumbas a abandonar o campo e tentar a sorte na capital. A violenta seca de 1905 que assolou a colheita, a morte do pai de Josefa e os esforços vãos dela e de Geraldo para manter a fazenda, os dezessete anos vivendo no Engenho Ribeira como retirantes e a posterior baixa do açúcar desanimaram os sertanejos, que viram na capital e no trabalho nas fábricas o único futuro possível para a família. A segunda parte possui quarenta e três subpartes que relatam em detalhes os seis anos que a família passou em Aracaju. Nesses anos, a luta contra a miséria, as doenças, a fome e as tragédias familiares acompanharam os Corumbas. Esta é a principal parte do Livro. Por fim, a terceira parte, sem nenhuma subdivisão, trata do regresso melancólico e humilhante de Geraldo e Josefa ao Engenho da Ribeira.

            O autor reconstrói a sociedade aracajuana recém-industrializada a partir do drama dessa família e dos personagens que cruzam seu caminho. Fontes faz da família Corumba um retrato que aponta para tantas outras que vieram para Aracaju em busca de melhoria de vida e acabaram desiludidos, no final. Percebemos os anseios e sonhos que permearam a cabeça de Sá Josefa quando aventou a ideia de se mudarem:



                                   Na Capital, havia emprego para as duas meninas mais velhas. Era nas Fábricas de Tecido. Estavam assim de moças, todas ganhando bom dinheiro... Pedro não custaria em conseguir um bom lugar, como ferreiro ou maquinista... Uma outra vida, enfim. Vestia-se melhor, andava-se no meio de gente... Depois, tinha assim uma certeza, uma espécie de pressentimento de que lá as filhas logo casariam. Isso, as mais velhas. As duas mais novas iriam para a escola. Nem precisavam de trabalhar. Caçulinha, que era tão viva e inteligente, bem poderia chegar a professora... [1]



                Mas os anseios da mãe de família não se realizaram. Antes, nos seis anos que viveram em Aracaju, a desgraça se abateu sobre os Corumbas. Pedro, o único filho homem, envolveu-se com o movimento anarquista e, por ser um dos cabeças de greve, foi preso e deportado para o Rio de Janeiro. As duas filhas mais velhas trabalhavam nas fábricas de tecido. Rosenda, a primeira filha, logo envolveu-se com um cabo chamado Inácio e fugiu com ele. Mas, foi abandonada e entrou para a prostituição. A segunda filha, Albertina, a que melhor ganhava, também acabou sendo enganada. O médico Fountoura, após longo cortejo, conseguiu convencer a mulata a fugir com ele. Mas, após cinco meses, a abandonou e ela também acabou caindo na prostituição, indo morar na Rua de Siriri, centro de prostituição da cidade. Bela, a outra filha, estava sempre doente. Quando Albertina fugiu, ela decidiu sair da escola e empregar-se na fábrica para ajudar na sobrevivência da família . Mas acabou não resistindo à tuberculose. E Joana, chamada por todos de Caçulinha, sob quem repousava a esperança da família, também precisou largar a escola, abandonando seus estudos na Escola Normal e o sonho de torar-se professora, para trabalhar na indústria têxtil. Ela conseguiu um noivo, o soldado Zeca. Mas, após terem relações, o noivado deles entra em crise. A pressão das convenções sociais, especialmente sobre a mulher, colocou em cheque os sentimentos de um pelo outro. O noivado acabou sendo desmanchado e Caçulinha, tomada pela vergonha e humilhação, acabou aceitando viver às custas de Gustavo de Oliveira, um chefe político do sertão, se tornando sua amante.

            Os acontecimentos vividos nos seis anos em que moraram no Aracaju envelheceram e tiraram a esperança e a vontade de viver do casal Geraldo e Josefa, que decidem voltar ao Engenho da Ribeira. O romance acaba de maneira triste e emocionante, relatando o choro dos velhos, e os soluços de Sá Josefa, personagem sempre tão ríspida e forte, alarmando os que se encontravam no mesmo trem que eles. Fontes escancara a realidade dura do cotidiano dos operários em Aracaju no início do século XX. O ideal de progresso, tão aclamado e defendido pelas elites, não se mostrava tão bonito assim do ponto de vista dos trabalhadores. As jornadas de trabalho eram desumanas, o desrespeito às mulheres era constante – elas eram tratadas como objeto – e não raro ocorriam acidentes de trabalho que custavam a vida de crianças e adolescentes que trabalhavam como aprendizes.

            O drama feminino é um dos pontos principais sobre o qual Armando Fontes tece sua trama. A maioria das pessoas que trabalhava nas fábricas eram mulheres. Ser mulher operária era sinônimo de ser “mulher de vida fácil”, para a sociedade. Além da discriminação, elas sofriam assédios dos contra mestres e não podiam reagir, sob a pena de perder seus empregos. Foi o que aconteceu com Albertina. Ao responder brutalmente ao assédio do contra mestre e depois ir reclamar justiça ao gerente, ela foi demitida. As palavras do gerente nos possibilita perceber a defasagem de poder que existia nas fábricas: “Ele é o contramestre! [...] É na palavra dele que eu tenho de acreditar. Senão, adeus ordem e disciplina...A senhora mesma foi culpada de tudo. Fez um bruto escândalo na hora do serviço.” [2] Em nome dos ideais do progresso, pautados na ordem e na disciplina, desconsidera-se o humano e os direitos dos trabalhadores. Naquela época, os pobres já não tinham direito a ter direito, muito menos as mulheres.

            As mulheres dependiam econômica e socialmente dos homens. O pensamento do casal Corumba, manifestado com pesar após a fuga de Rosenda, revela isso: “Queriam, apenas, vê-las casadas! Que depois, com seus maridos, fossem obrigadas a lidar por todo o dia, sofressem mais duras privações... Nada disso importava: casadas, elas seriam gente!” [3] Para dar voz aos sofrimentos da mulher, é que Fontes escolhe criar uma família formada, em sua maioria, por mulheres. Também percebemos que a personagem Sá Josefa é mais citada do que Seu Geraldo, no tocante às decisões e ao trato com as filhas e com os acontecimentos que se abatem sobre a família. Ela é mostrada como uma mulher de temperamento forte e gênio difícil, enquanto Geraldo, apesar de chefe da casa, possui temperança e personalidade mais mansa.

            Fontes também aproveita para mostrar outra face do operariado, aquela que resistia. Esse outro lado da moeda é representado pelo tipógrafo José Afonso. Imbuído de ideias anarquistas e leituras de cunho socialista e comunistas, e uma tendência à liderança, ele reorganiza a Sociedade Proletária de Aracaju e funda o jornal O Proletário. Pedro Corumba é influenciado por este homem e discipulado nas ideias de esquerda. Mas é apenas quando as fábricas anunciam a jornada noturna sem pagamento extra que a cidade começa a fervilhar. Os líderes da Sociedade lançam o indicativo de greve, enquanto as fábricas ameaçam despedir aqueles que faltassem o trabalho. Os grevistas respondem atacando os trabalhadores na volta do expediente. Fontes também mostra que os interesses políticos não ficavam à margem desses fatos. O Presidente do Estado planejou um golpe para atrair a atenção popular e angariar votos. Ele declarou tomar partido dos operários, defendendo os oprimidos contra os opressores. Quando a situação, porém, tomou proporções que ele não calculara, sua atitude foi a de ordenar a repressão dos líderes grevistas. Foi nesta ocasião que Pedro foi preso e deportado.

            Alguns personagens são mostrados como pessoas da elite que, procuradas pelos pobres, tentavam ajudá-los a melhorar de vida. Uma dessas figuras é o Dr. Barros, a quem a família Corumba recorre por mais de uma vez. Mas Fontes não deixa de criticar também esses benfeitores. Em certa passagem, quando Caçulinha vai pedir por uma recomendação de emprego e anuncia que irá abandonar a escola, Fontes descreve o pesar d Dr. Barros e dos seus amigos intelectuais. Esses benfeitores começam a refletir sobre o caso e sobre a sociedade aracajuana e suas contradições. Nesse ponto, Fontes escreve que a conversa toma rumos mais amplos e cada um esforçou-se por “sustentar suas ideias a respeito da melhor organização social do mundo”. [4] Ou seja, a elite discutia e refletia sobre os problemas sociais, mas não agiam de maneira verdadeiramente eficaz e comprometida a ponto de modificar realmente a ordem social vigente.

            O livro também nos oferece uma visão material da cidade de Aracaju. O ponto mais alto e bonito da cidade era a colina do Santo Antônio. De lá, se observava a capital e sua construção. As casas do subúrbio eram tanto de palha como de telha, espalhadas por entre os arbustos ralos da caatinga. O cemitério Santa Isabel estava mais adiante, também fora do quadrado de Pirro, que constituía em tese a cidade. Esta é descrita como “um todo amontoado de tetos vermelhos, afogados entre o verde dos coqueiros e das árvores que vicejavam nos quintais.” [5] Além disso, Fontes captura aspectos culturais daquela época. As festas – de São José, São João, Bom Jesus dos Navegantes – são sempre descritas como aqueles raros momentos de alegria e prazer para a pobre família Corumba. Eram as ocasiões nas quais a gente sofrida podia se distrair, divertir-se e esquecer um pouco das mazelas que enfrentavam. Era também o momento de celebrar a religiosidade e, portanto, as esperanças dos Corumbas retornam após as festas, como se estas fossem uma promessa de que tudo acabaria bem, ao final.

            O romance é de linguagem acessível, apesar de conter palavras desconhecidas para o público atual. Mas sua leitura torna-se um tanto difícil na medida em que o leitor se permite olhar a família Corumba como representante de tantas centenas de outras famílias que viveram em condições semelhantes. Ao tentar transportar-se para aquela sociedade e aquele tempo, o leitor acaba por envolver-se com o drama dessa família. É difícil, especialmente para estudantes acadêmicos, manter-se indiferente. O formato de romance contribui para este sentimento de empatia com os personagens. Seria talvez precisamente este sentimento que Armando Fontes desejou passar aos seus leitores. Os Corumbas torna-se, por sua riqueza de detalhes e fidelidade ao contexto ao qual se refere, uma leitura obrigatória para todos aquele que desejem entender a sociedade aracajuana recém-industrializada do começo do século XX. E, ao mesmo tempo, é uma obra que nos faz refletir sobre o presente e o preço que foi pago em nome do ideal do progresso e desenvolvimento, tão caro a nossa sociedade até hoje.





Referências Bibliográficas

FONTES, Armando. Os Corumbas. 2ª Ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1999, 172 p.



[1] FONTES, Armando. Os Corumbas. 2ª Ed. Rio de Janeiro: José Olympio, 1999, p. 10.
[2] Id. Ib. p. 29
[3] Id. Ib. p.59. [grifo nosso].
[4] Id. Ib. p.90.
[5] Id. Ib. p.127.

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